Folha de S.Paulo – Uma oportunidade de mudança

A impunidade de atropeladores é uma barbaridade nacional que banaliza mortes cruéis e evitáveis: há culpados por tais crimes cumprindo pena hoje?

Gabriella Guerrero Pereira atropelou, em 23 de julho, Vitor Gurman, que morreu cinco dias depois.

Mas de uma entrevista sua, que poderia ser usada em cursos de direito, depreende-se que ela é que foi a vítima: do namorado, que bebeu demais, do carro, que, robusto, tem direção mole, do azar, pois Vitor passava por ali… Tão vítima do acaso quanto Vitor, ela estava "destruída" (embora não a ponto de aceitar qualquer culpa) e gostaria de "pegar o sofrimento (…) para carregar só comigo".

Econômica na responsabilidade, ela esbanja compaixão e dá a entender que, mesmo sem ser culpada pela destruição real, não figurada, de uma vida jovem, já foi punida por sua própria dor.

Em 5 de agosto, ela foi indiciada sob suspeita de homicídio com dolo eventual, e seu pai, Sergio Pereira, declarou: "Foi uma mera fatalidade, das que acontecem uma em mil". Além do desrespeito implícito no "mera", vê-se aqui a mesma mentalidade em operação: a violência no trânsito seria um fenômeno natural, como terremotos e tsunamis. Assim, numa cidade com taxas absurdas de mortes provocadas por motoristas irresponsáveis, o fator humano se evapora.

Ainda é normal, no Brasil, encarar como "mera fatalidade" o que em outros lugares é crime gravíssimo e, caso se conclua que Vitor Gurman foi vítima de um, é assim que isso deveria ser tratado, pois onde há crime deve haver punição.

Esse truísmo choca-se, porém, com uma cultura da cordialidade, irreverência e mais afeita ao perdão do que ao respeito às leis, uma cultura de coitadinhos vivos e de mortos à espera de justiça.

A impunidade dos atropeladores é uma barbaridade nacional que banaliza mortes cruéis e evitáveis.

Quantos culpados de tais crimes estão cumprindo pena hoje no Brasil?

Há algum? Na Europa e nos Estados Unidos, pedestres, gente de skate, ciclistas etc. são respeitados. Lá, há punição, e o que quase não há é violência no trânsito.

Punição exemplar não traz ninguém de volta, mas é decisiva para que outros não morram tão gratuitamente.

Segundo a sabedoria talmúdica, quem desculpa os culpados ultraja suas vítimas.

Punição, porém, é o último recurso e, para que se torne cada vez menos necessária, cabe incentivarmos e participarmos cada vez mais de campanhas de conscientização e de uma educação que, voltada para deveres, não só para direitos, enfatize as responsabilidades para com a comunidade.

Com esse intuito, os amigos do Vitor organizaram, na noite de 30 de julho, uma comovente caminhada silenciosa pelas ruas da Vila Madalena. Desde então, o grupo tem promovido manifestações públicas com a chamada "Viva Vitão: não espere perder um amigo para mudar sua atitude no trânsito".

Vamos ouvi-los. A violência de nosso trânsito mata mais gente do que muitos conflitos que merecem manchetes. Não estamos em guerra: queremos andar e passear a pé, de bicicleta etc. por nossas ruas sem correr risco de vida. O caminho rumo à mudança é longo e tem duas vias: educação para a responsabilidade e punição justa.

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TERESA CRISTINA BRACHER é psicóloga e vice-presidente da ACTC (Associação de Assistência à Criança e ao Adolescente Cardíacos e aos Transplantados do Coração).
NELSON ASCHER é poeta, tradutor e ensaísta.