Estadão – A democracia liberal ainda funciona e é fundamental

Estamos enfrentando o período mais tenso na sociedade brasileira desde a redemocratização no Brasil: uma população castigada historicamente por uma estrutura tributária regressiva, e sub-representada politicamente viu-se, mais uma vez, decepcionada com a piora na qualidade de vida logo após as eleições. Em meio a uma pandemia do vírus da Covid-19 e de informações falsas, junto de um caldo requentado de populismo, temos o terreno fértil para que a democracia comece a ser questionada, como está sendo.

No ano passado, o maior banco de dados sobre democracia no mundo, o Instituto V-Dem, deixou de considerar o Brasil uma democracia liberal e passou a vê-lo como uma democracia “eleitoral”, ou seja, que realiza eleições livres com determinada frequência, mas que tem enfrentado dificuldades para a manutenção das liberdades individuais e de imprensa.

Verdade que esse fenômeno não ocorre só aqui. Devastada, em vários países do mundo, por governos irresponsáveis, corruptos e distantes do povo, a população busca por líderes que se digam seus porta-vozes legítimos, mas, como a sociedade é diversa e complexa, a legitimidade está com a maioria. Nada mais democrático, não?

Não, é aí que está o veneno para a democracia. Líderes populistas consideram a democracia como uma estrutura para estabelecer e executar a vontade do povo, por meio de eleições que refletem, portanto, a opinião da maioria, ainda que essa “maioria” não seja necessariamente numérica dependendo do sistema eleitoral de cada país.

Vamos às razões da problemática: primeiramente, qualquer sistema inteiramente baseado nas preferências da maioria corre o risco de levar à tirania da maioria ou à ditadura das massas, à violação, perseguição e, em casos extremos, à execução de grupos minoritários.

Embora formalmente, esse sistema ainda possa ser considerado democrático, afinal responde à vontade da maioria do povo, é uma forma injusta de democracia que não pode ser sustentada por muito tempo sem apelar à violência estatal. É por isso que os países democráticos adotam constituições e outros meios políticos, sociais e jurídicos, com duas casas de representantes ou um veto presidencial, ou supremas cortes destinadas a restringir o poder da maioria de violar ou atentar contra a existência de grupos minoritários ou visões de mundo diferentes.

Ainda é importante frisar que existem preocupações reais sobre as maneiras pelas quais políticos populistas tentam explorar as falhas estruturais nos processos de tomada de decisão do cidadão comum, que não possuem o conhecimento necessário para relacionar muitas das questões da agenda pública, seus efeitos práticos nos diferentes setores do País e interesses escusos que podem estar influenciando essas decisões.

Esses políticos tendem a apresentar soluções simplistas e rápidas para problemas complexos e baseiam suas propostas em informações parciais, intuição, emoção e, até as chamadas “Fake News”, em vez da rigorosa análise baseada em evidências que, muitas vezes, pode desagradar a maioria, mas, a longo prazo, é a melhor decisão para o País.

Esta é a razão pela qual quase nenhum país democrático do mundo opera um sistema de democracia representativa direta, onde o cidadão possa decidir temas por meio de voto direto, ou de enquetes.

Assim, desinibidos de paixões e preferências partidárias, ideológicas, temos que a democracia liberal com suas instituições formalmente legais e reconhecidas perante a Constituição Federal não só ainda funciona, como é fundamental, para que, tenhamos nossos direitos garantidos, mesmo que os ventos, subitamente, passem a soprar contrários as nossas preferências.

A defesa do Estado de Direito, das instituições e da imprensa não é um “cale-se” na opinião do povo, mas, justamente, a defesa de que essa opinião nunca seja oprimida por lado algum.”

Link para o artigo: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-democracia-liberal-ainda-funciona-e-e-fundamental/?fbclid=IwAR3EhrsoYpT363vHXfnoXxrA4hV5lqI5sGP3cJgjgv6D0L88g-8-U2EhgKk

*Floriano Pesaro, sociólogo”